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SER LGBTQ EM BH

O que é ser gay em BH?

  • Foto do escritor: serlgbtqembh
    serlgbtqembh
  • 11 de nov. de 2018
  • 19 min de leitura

Em uma tarde ensolarada de junho, me dirigi à casa de Luiz Morando. Como o jogo do Brasil na Copa do Mundo havia acontecido naquela manhã, as ruas de Belo Horizonte ainda estavam coloridas de verde, amarelo e azul. Depois de atravessar a cidade até a região nordeste, chego ao prédio onde mora o entrevistado. O edifício se diferencia entre os outros residenciais da região por ter apenas três andares (com dois apartamentos em cada) e a ausência de elevador.



Até então, só havia conversado com Luiz através do Facebook. A sua voz grave e baixa atende o interfone. Nós nos sentamos em uma sala repleta de livros, pinturas e fotografias para fazer a entrevista. Nessas estantes, Caio Fernando Abreu dividia espaço com Charles Dickens, e “It was the best of times, it was the worst of times” (“Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos”) se encaixa tão bem no momento em que vivemos quanto se encaixava quando foi publicada pelo inglês em 1859. As cores do ambiente saltam aos olhos: as paredes roxas, o sofá preto, as almofadas amarela, laranja e verde.

Em meio a isso tudo, o nosso entrevistado: um homem franzino, de cabeça calva, sem barba e com um brinco quase imperceptível em sua orelha esquerda. A sua vestimenta lhe confere uma aparência descontraída: camisa com a citação “Think before you speak, read before you think” (Pense antes de falar, leia antes de pensar) da escritora Fran Lebowitz, calça jeans délavé e um All Star preto de cano baixo. Sua forma calma e pausada de falar contrasta com as suas mãos inquietas.



Nas redações, é comum de se adotar certa taxonomia de entrevistados ou fontes: as oficiais ou governamentais, os especialistas, e os personagens, categoria geralmente conferida às “pessoas comuns”. Tendo trabalhado por algum tempo no jornal diário de uma rádio, essa nomenclatura já me é intuitiva. Esses agrupamentos nos ajudam a navegar pelas escolhas do cotidiano da profissão, desde as formas de elaborar as perguntas até a maneira como editamos uma fala para colocá-la no texto final. A entrevista com Luiz é uma das ocasiões em que esses lugares são tencionados: ao mesmo tempo em que ele é um pesquisador da história das pessoas LGBTQ em BH e no país, ele também carrega toda a história de ser um gay, militante e morador da cidade há mais de 30 anos. Ele mesmo conta como a sua orientação sexual foi decisiva para a escolha do seu objeto de pesquisa no Mestrado em Letras: a representação de personagens homossexuais na literatura brasileira do século XIX e o discurso médico da época. Frequentemente durante a nossa conversa, uma pergunta sobre uma vivência pessoal se desdobrava em uma fala sobre acontecimentos e lugares que ele descobriu na sua pesquisa.


O mundo que se abre na cidade grande


Nascido na cidade interiorana de Carangola em 1964, Luiz afirma que o grande marco para a vivência da sua sexualidade foi se mudar para Belo Horizonte, aos 19 anos, para cursar Letras na Universidade Federal de Minas Gerais. Até então, ele já se percebia como gay, mas não tinha contato com homossexuais assumidos. Ele relembra que tinha um tio gay que era seu vizinho, mas a sexualidade dele sempre ficou subentendida. A esse parente é atribuída a causa da tranquilidade na relação com a família. Nunca houve nenhuma tentativa de submetê-lo aos processos que hoje chamamos de “cura gay”, como terapias com o objetivo de reprimir ou “corrigir” a sexualidade fora da heteronormatividade.


Os não-heterossexuais dentre os então quase 35 mil carangolenses contabilizados pelo censo de 1960 do IBGE não tinham muito para onde ir. Em meio a um contexto de pouca abertura para se falar sobre sexualidade e o conservadorismo da ditadura, muitos adolescentes se voltavam para os grupos de jovens católicos. Luiz também estava ali, entre o final dos anos 70 e o início da década de 80, buscando ter um senso de pertencimento a algum grupo. Já tinha vivido paixonites por colegas e tinha para si que era gay, só a família que ainda não sabia. Esse não era o caso de todos: havia também os que procuravam ali uma cura, uma forma de reprimir esse lado subjugado pela sociedade. Poderia ser o desejo, a paixão, um sentimento de inadequação ou até um simples trejeito identificado com o outro gênero.


Junto aos colegas da universidade foi que ele começou a se encontrar. A saída do olhar dos pais, como ele mesmo diz, propiciou que ele tivesse mais liberdade para se expressar. Citando o livro “O Homossexual visto por entendidos”, Luiz diz de como essa experiência da saída do lugar de origem está relacionada ao processo de vivência da sexualidade, uma narrativa muito comum para quem vem das cidades do interior. Nesse caso, a capital representava um mundo de infindáveis possibilidades: novos lugares, novas pessoas, novas formas de ser você mesmo.


“Necessariamente o gueto não é escondido. O gueto é um lugar onde você cria uma cultura e é um lugar inclusive de pertencimento e reconhecimento”

Luiz consegue marcar facilmente o ponto de partida para as suas experiências nos lugares LGBTQ da cidade: um roteiro de lugares gays publicado em 87 no Jornal de Casa, um periódico gratuito que existia naquela época. Apesar dos diversos recortes de publicações e pesquisas de arquivo que ele fez ao longo dos anos, nunca conseguiu recuperar aquela página de jornal tão marcante para a sua vivência.


Ao longo de duas semanas, ele percorreu bares, boates e saunas até conhecer todos os lugares daquela lista. Algumas boas lembranças ficaram desse percurso, mesmo que as visitas tenham sido pontuais. Ao chegar ao bar La Dolce Vita, sua maior sensação era de estranheza. As paredes metálicas pareciam estar cobertas papel alumínio, como se ele e todos ali fossem bom bons sortidos dentro de uma caixa. Nas redondezas, as pessoas se escondiam nos jardins das casas e prédios para transar. A luz do ambiente ainda não ajudava e essa cafonice toda fez com que a primeira visita fosse a única.


O La Dolce Vita não durou muito. Não só pelo mau gosto da decoração, mas também pelo incômodo às adjacências. O estabelecimento ficou em frente ao bloco A do Edifício JK entre 87 e 89. O residencial de 23 andares já estava na Rua Timbiras há mais de 10 anos, nele estava parte dos vizinhos incomodados pelo som alto e pelas pessoas que transavam em público nas proximidades. Em suas pesquisas de jornais, encontrou notícias falando de batidas policiais no local. Pouco tempo depois, abriu-se ali a sauna Vapore, que permaneceu com essa alcunha até 2006, quando teve seu nome alterado para “24 horas”. O lugar de encontro de homens que fazem sexo com homens continua lá até hoje, com uma fachada discreta e branca.


Apesar de uma cafonice similar, a boate Blue Boy conquistou sua afeição, com o seu interior apertado, rústico e a imitação de estalactites no teto. Era a sua primeira vez em uma boate e, quando viu a pista de dança subir, ficou impressionado. Para a década de 80, aquilo ainda era uma grande novidade. Mesmo depois de ver ali dezenas de shows de transformistas e travestis, ele não se cansou.


O que mais marcou Luiz foi um conjunto de bares localizados na Rua Sergipe, entre a Av. Brasil e a Rua Gonçalves Dias, atrás do prédio da Secretaria de Segurança Pública, onde hoje fica o Centro Cultural Banco do Brasil. Na então denominada “Rua da Lama”, o mundaréu de pessoas bebendo nas calçadas praticamente escondia pequenas portinhas, onde se revelavam os inferninhos, espaços pequenos e sempre lotados. Quase todos os locais recebiam a alcunha dos donos: Bar do Carlos, Bar da Norma, Bar da Marinha, Kokeluche/Bar do Fernando, Bar da Sheila, Bar do Beto e Cantinho do Céu. Já passavam poucos carros nas ruas, então quem queria respirar podia ficar um pouco mais afastado do passeio.


O movimento na região começava já na quinta-feira à noite, com a Feira Hippie, que até 1991 ocorria um quarteirão acima, na Praça da Liberdade. Era frequente que as pessoas passassem pelas lojas de artesanato e seguissem para os bares. Como não era uma zona residencial, a farra ia noite à dentro. Às sextas e aos sábados à noite, as portas da Rua da Lama também se abriam e recebiam diversos clientes em seus inferninhos. Em pé dentro daqueles lugares pequenos ou sentado nas mesas da calçada, foi onde Luiz passou alguns anos de sua juventude. No início dos anos 90, os bares já começaram a fechar e as mesas saíram da calçada. As mesmas portinhas deixaram de abrir à noite para atender no horário comercial, seja com lanches, refeições ou mercadorias.


Um dos aspectos que chamava atenção de Luiz para lá é a forma como as pessoas ficavam na rua, diferente da mentalidade de gueto que ele percebia ser muito comum durante a década de 80. Muitos dos lugares, que, na época, se classificavam como “GLS”, buscavam discrição e as pessoas não se mostravam. A relação de Luiz com o gueto é ambivalente: ao mesmo tempo em que o ambiente aberto da Rua da Lama foi o que o atraiu, ele vê que há um propósito de sociabilidade nesses lugares mais fechados.

Havia a criação de uma espécie de subcultura, com seus próprios códigos de linguagem e uma relação forte de pertencimento. Um exemplo era algo muito comum de se ouvir dez anos atrás, de que homens que usavam brincos na orelha direita eram gays e os héteros só furavam a esquerda. Nos Estados Unidos, ficou famosa a prática de se usar certas cores de lenço para sinalizar preferências sexuais. A partir dos movimentos políticos identitários, cuja proposta era trazer os ambientes LGBTQ para o público e frisar a importância do ato de assumir a sua identidade de gênero/orientação sexual, os guetos começam a desfazer.


Na metade dos anos 90, ele percebeu que os ambientes muitas vezes abriram mão de se declarar como LGBTQ para adotar uma bandeira mais fluída, que atraísse mais pessoas. Na análise do pesquisador, esse processo de “dissolução” dos guetos acompanha a trajetória de obtenção de direitos. Ao mesmo tempo em que isso ocorria, ele também foi perdendo o laço de pertencimento com os lugares que frequentava. Era um tempo de menos carão e mais amizade, descreve. Especialmente nos anos 70 e 80, as boates, por exemplo, eram ambientes onde as pessoas se reconheciam, se sentiam mais livres e acolhidas do que se sentem nas baladas hoje.


Nos últimos anos os ambientes não têm mudado tanto, com exceção da predominância da música pop internacional e eletrônica. Nas boates que frequentou, como a Plumas e Paetês, cuja clientela era majoritariamente lésbica, tinha uma playlist em que Madonna e Cyndi Lauper eram seguidas por Cazuza e Rita Lee, tocando músicas brasileiras a noite toda. A boate teve um público que ficou mais misto ao longo dos seus quase 10 anos de existência. Os seus atrativos iam desde sinucas, que eram o ponto das mulheres, e até uma longa escadaria onde as bichas dançavam e se debruçavam. Como nem tudo são flores, o local também era conhecido pelas das brigas. Luiz nunca viu nada, mas rumores dizem que não se hesitava em quebrar garrafas e partir pra cima.


Além dessas mudanças, há uma efemeridade dos locais da cidade. Ao longo do tempo, muitas vezes as boates trocavam seu nome e endereço, antes de sucumbirem ao fechamento. Para ele, isso faz parte da própria dinâmica comercial de Belo Horizonte, cuja fama de capital dos botecos se justifica em parte pela alta competitividade entre os estabelecimentos de vida noturna. As casas duradouras, como a Josefine (fundada em 1999 com o nome de Excess e fechada no ano passado), são exceção.


No entanto, o segmento das saunas é um em que se percebe mais longevidade. Para Luiz, isso se deve às diferentes formas de sociabilidade. Primeiro, há a pluralidade da clientela, que nunca se restringiu aos homens gays. São lugares fechados, em que os indivíduos não necessariamente se identificam, com fachadas discretas e não há uma relação muito direta com o atendimento. Isso propicia uma sensação de segurança que contribui para fidelização da clientela, especialmente no caso dos não assumidos. Essa fidelidade proporciona outras possibilidades de entretenimento e atrativos, como os shows de drag queens.


A pesquisa e os afetos

“Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem precedentes de espécie alguma, no momento fatal em que seus olhares se fitaram pela primeira vez. (...) ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante cousa, nunca homem algum ou mulher produzira-lhe tão esquisita impressão, desde que se conhecia! Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de 15 anos, abalara toda a sua alma, dominando-a, escravizando-a logo, naquele mesmo instante, como a força magnética de um ímã”.


Esse trecho narra um dos primeiros encontros entre Amaro e Aleixo, os protagonistas do romance “Bom-Crioulo” de Adolfo Caminha, considerado o primeiro livro da literatura brasileira a ter a homossexualidade masculina como um de seus principais assuntos. A obra foi um dos objetos da dissertação de mestrado de Luiz, cuja pesquisa investigava as formas de articulação entre o discurso médico e a construção dos personagens nos livros do final do século XIX.


Dois pesquisadores importantes para o início da sua pesquisa foram os ativistas Luiz Mott (fundador do Grupo Gay da Bahia) e João Silvério Trevisan (autor do livro “Devassos no Paraíso”, uma das primeiras obras sobre sexualidade no Brasil). Através de uma troca de cartas foi que ele obteve algumas das primeiras referências que usaria entre 90 e 92, quando cursou o mestrado. Trevisan ainda veio a aparecer muitas vezes em seu trabalho no futuro, em especial devido a sua atuação no Lampião da Esquina, jornal que circulou em todo o país entre 78 e 81 e tinha como foco o público gay brasileiro, e seu espaço na revista Sui Generis.


Nos últimos 15 anos, Luiz se dedicou a um trabalho sistemático de recuperar registros sobre a homossexualidade no Brasil, principalmente através de arquivos de jornal, autos judiciais e registros policiais. Um dos principais frutos da sua pesquisa foi o livro “Paraíso das Maravilhas: uma História do Crime do Parque”, publicado em 2008. Ao final dos anos 90, um burburinho entre colegas atiçou a curiosidade dele: havia ocorrido um crime no Parque Municipal em 1946 que estava relacionado a homens gays. Na obra, o pesquisador reconstitui não só o crime, como o contexto em que ele ocorreu – vários homens frequentavam o Parque à noite e encontravam no “Paraíso das Maravilhas” um ponto de sociabilidade. Quando aconteceu esse crime, a cidade inteira discutia as circunstâncias do assassinato, com cobertura exaustiva da mídia.


“Pode ser um crime passional com simulação de latrocínio ou um simples latrocínio frio e premeditado, ou ainda, como acreditam alguns, um desfecho de conhecimentos com um tarado, um caso de homossexualismo. Aliás, só um sádico ou um agressor odioso, sedento de vingança, desfecharia mais de 20 facadas sobre o diretor da Eletroquímica. (...) Tudo isso são meras suposições que a opinião pública sustenta nos comentários que acendem em todas as esquinas, nos bondes, nos cafés, por todas as partes da cidade. O público chegou ao extremo de acusar a polícia, taxando-a de estar escondendo a verdade, por se tratar de caso ligado a pessoas de projeção social”, narra a introdução de uma reportagem de 11 de dezembro de 1946 do jornal Diário da Tarde, que Luiz destaca na página 105 do seu livro.



A iniciativa da pesquisa foi tomada de forma independente. Luiz chegou a tentar concursos para lecionar em universidades públicas e também editais de pesquisa, sem sucesso. Hoje em dia, opta por continuar dessa forma, que lhe dá mais liberdade para fazê-la. Em sua casa, há um grande armário cuidadosamente catalogado com clipping de jornais de grande circulação, revistas e boletins de movimentos sociais. Essa extensão deve-se, em parte, a um hábito de comprar jornal impresso que mantém até hoje. Ele mesmo já escreveu para alguns boletins de movimentos sociais pontualmente. Seu acervo já foi maior, por exemplo, os folders de estabelecimentos que ele frequentou desde os anos 80 foram doados ao Arquivo Público de Belo Horizonte. Enquanto não encontra uma forma mais sistemática de disponibilizar o que já reuniu, ele publica grande parte desse material em séries temáticas de postagens no seu perfil do Facebook.


Uma parte disso começou a surgir já durante os anos 90, quando Luiz esperava ansiosamente, mês a mês, para comprar a revista Sui Generis, e, mesmo assim, era necessária muita procura para encontrar uma banca de jornal que a vendesse. As edições não paravam na sua mão, rodavam os seus círculos de amigos e davam assunto pras conversas de bar até o próximo número.


O sentimento é de que a revista veio ocupar um buraco que havia em meio ao mercado editorial da época. Mesmo assim, Luiz não se diz um “tiete” e nunca quis aparecer entre as cartas do leitor, uma das seções mais comuns nas revistas dos anos 90. A publicação foi longeva dentro de um nicho no qual a maioria não chega a mais de 20 edições, além de se diferenciar por não ter como foco os ensaios eróticos. Folheando a primeira edição, é possível ver reportagens que falam de temas como ativismo, música, cinema e literatura.


A história LGBTQ viva na cidade

Em uma roda de conversa na Casa dos Jornalistas, Luiz trouxe alguns dos seus exemplares para discutir o histórico dessa imprensa. O evento faz parte da iniciativa Jornalistas pela Diversidade, promovida pelo Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais. Essa casa existe desde 1965 no número 400 da Avenida Álvares Cabral, no Centro de Belo Horizonte. A sensação de estar em um lugar antigo é reforçada não só pela fachada, que destoa dos prédios ao redor, como também a mobília de madeira, a parede de azulejos azuis, a tinta levemente encardida e os lustres na sala de entrada. Além de ser a sede do sindicato na cidade, é palco para desde palestras até shows de artistas locais, além de ter um bazar quase permanente de roupas e livros usados. Curiosamente, entre os exemplares à venda na noite de julho em que eu estava lá, tinha o Bom Crioulo.



Somos quinze pessoas sentadas em carteiras, que já nos remontam à posição de alunos, enquanto ele e o professor Bruno Leal, com quem compartilhou a fala, se sentavam em cadeiras antigas de madeira com estofado floral. Se em sua casa Luiz falava com a voz baixa e suave, aqui ele projeta, alternando entre ficar sentado à nossa frente e circular pela sala. No entanto, a sua propensão a gesticular não muda. Ao longo de duas horas, discutimos desde o surgimento incipiente dessa mídia gay e lésbica, comendo pelas beiradas nas colunas sociais (que não se assumia abertamente) e pela imprensa informal antes de alcançar a difusão de publicações tanto de cunho erótico, quanto de caráter mais jornalístico, com colunas e reportagens. Mesmo no contexto atual, ainda há certa carência de canais formais que falem sobre a história do movimento no Brasil de maneira didática.



Muitas das pessoas que estavam ali já se conheciam, pela forma como falavam com Luiz. Em alguns momentos, sacam o celular para tirar fotos ou gravar um stories no Instagram. A caderneta também não ficou obsoleta e é o instrumento que parte dos ouvintes usa para fazer anotações pontuais. Quase todos ficaram ali até o final, quando se abriu para perguntas. Ao longo das falas, as pessoas se levantavam para pegar os exemplares do acervo do professor e dar uma folheada.


“Deus criou o mundo. O diabo inventou Belo Horizonte”

Com essa citação do figurinista Augusto Debois, Luiz abriu a palestra “Corpos em trânsito – memória, subjetividades e territorialidades” que concedeu na segunda Quarta Queer, iniciativa que ocupou o Teatro Francisco Nunes toda última quarta-feira do mês entre junho e setembro de 2018. Antes de o professor subir ao palco, o apresentador, vestido de chapeuzinho vermelho, conta que descobriram o “Paraíso das Maravilhas” no processo de pesquisa para uma peça. Mais de 70 anos depois de aquele grupo de gays e travestis se apropriarem daqueles espaços do Parque Municipal, a sua história viria a ser discutida naquele espaço, inaugurado em 1950 e reaberto em 2014.


Enquanto na Casa do Jornalista o ambiente da sala era mais propício para a conversa, a configuração de plateia e o microfone do teatro impunham certa distância. Os vinte e poucos ouvintes que, em maioria, já vinham das outras atividades da programação da Quarta Queer sentavam-se espalhados pelas dezenas de poltronas do Francisco Nunes. É quase cômica a presença de uma cadeira de praia em cima do palco, em meio a essa atmosfera mais formal. Ela ainda fica vazia, já que Luiz preferiu ficar de pé próximo às primeiras fileiras.



Ao longo da segunda metade do século XX, diversos grupos de pessoas LGBTQ se reuniam no Parque à noite, sempre sofrendo repressão policial. Foi um longo histórico da cidade de teatros de revista, cabarés, apresentações de transformistas (muitas das quais também eram travestis), Miss Bonecas e outros concursos sendo realizados em diversos pontos da capital, em especial no “Baixo Centro” e na Lagoinha. Tudo marcado pelos conflitos com o poder público, que ora permitia a sua realização em ambientes fechados, ora estava batendo à porta para botar a casa abaixo. Nas ruas, a política higienista foi mais forte do que nunca durante a ditadura, e os seus resquícios continuaram mesmo depois da queda do regime, especialmente com as pessoas trans e travestis.


Outro ponto que ficou famoso foi o Edifício Maletta, onde foi criado o bar assumidamente gay “Nosso Encontro” em 63, apenas um ano após a abertura do prédio para estabelecimentos comerciais. Apesar de ele ter durado apenas até 64, o prédio da Bahia com Augusto de Lima continuou a ser frequentado por LGBTQs e militantes de outros movimentos sociais ao longo dos anos. Isso gerou uma reação das pessoas do condomínio: colocaram um posto policial dentro do prédio, catracas, trancava-se a porta da Rua da Bahia, e ainda relata-se que os gays e lésbicas eram recebidos por um corredor polonês. Desde 2009, a sobreloja voltou a ter muitos jovens e pessoas LGBTQ entre seus frequentadores, dentre eles, o próprio Luiz.


O ativismo do lado de fora da academia

O início dos anos 90, tanto no Brasil, quanto no mundo, foi um momento de virada para os gays. Durante a década de 80, a epidemia de HIV gerou uma grande preocupação, matando milhares de pessoas, entre eles, celebridades LGBTQ como Freddie Mercury, Cazuza e Renato Russo. Com isso, as pessoas em toda parte começaram a se mobilizar para combater a doença com a divulgação das formas de prevenção e tratamento.


Em seu livro, “AIDS como metáfora”, Susan Sontag se dedica a investigar como foi construído certo imaginário coletivo sobre a doença. O fato de ter atingido principalmente homens que fazem sexo com homens (devido ao maior risco de transmissão do sexo anal), fez com que esse grupo fosse ainda mais isolado e mal visto pela sociedade. Não se sabia, por exemplo, que a AIDS era um estágio final da infecção por HIV, vírus que poderia se manter silencioso por anos no corpo de alguém. O grau de fatalidade da doença, que então não tinha tratamento, causou um amplo medo, especialmente pela forma de transmissão ser incompreendida. Isso rendeu a alcunha de “peste gay”, pela forma como a doença debilitava essas pessoas.



Em 1992, Luiz se juntou ao Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS (GAPA) que, mesmo não sendo uma ONG voltada exclusivamente para os LGBTQ, recebia muitos homossexuais buscando saber mais. O primeiro projeto do grupo com o foco em homossexuais masculinos, “Sexo, prazer e homens”, foi coordenado por ele. Se em 87 o roteiro da vida noturna na cidade foi feito por diversão e em um exercício autodescoberta, entre 94 e 97 as idas aos bares, boates e saunas tomaram outro tom: o professor e outros voluntários do GAPA faziam ações de divulgação de informações sobre o HIV in loco. Dentro do grupo já começavam muitas discussões que hoje se expandiram para toda a sociedade, como o nome social, a apropriação de termos como viado e bicha e o uso de pronomes femininos para se referir a pessoas trans e travestis.


O GAPA fechou as portas em 2014 e Luiz permaneceu lá até o fim. Embora não tenha integrado nenhum outro movimento social, durante todo esse período ele observou a formalização dos grupos LGBTQ na cidade. Durante os anos da Ditadura, o movimento LGBTQ estava sendo constantemente reprimido pelo governo, mas pautas como o casamento e a adoção já eram reivindicadas há cerca de 50 anos atrás. Uma das primeiras referências de grupo formal de defesa dos direitos é o Somos, que durou de 1978 a 1983. Houve outros sem registro formal nos anos 80, como o Terceiro Ato. Nos anos 90, surgiram os grupos Guri, Atitude, o Clube Rainbow e a Associação de Lésbicas de Minas Gerais. Em 2002, surge o Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais (CELLOS-MG) que está ativo até hoje e atua na organização das Paradas LGBTs da cidade.



Acompanhando os movimentos durante todo esse tempo, a principal percepção é de que eles não duravam muito pela sua falta de maturidade. Caso houvesse uma troca de experiências maior com militâncias antigas, talvez muitas dessas dores de crescimento poderiam ter sido eliminadas. Mesmo assim, os LGBTQ não ficaram sem se manifestar: em 28 de junho 1996, o GAPA realizou um ato público do Dia Mundial de Orgulho Gay, e a 1ª Parada Gay de Belo Horizonte (organizada pela Associação de Lésbicas de Minas Gerais) ocorreu em 1997.


Com o passar dos anos, o movimento foi se fortalecendo e se consolidando. Para Luiz, isso teve início com a reunião da Associação Internacional de Gays e Lésbicas (ILGA) no Brasil em 95, que deu origem à primeira Parada do país e ajudou a movimentar as militâncias nacionais. Luiz vai às ruas todos os anos na Parada desde 99 e a cada edição viu o movimento LGBTQ da cidade não só ganhar volume, como também amadurecer na forma como tratava as pautas.


Até o trajeto mudou: de subir a Rua da Bahia para subir Afonso Pena e, atualmente, na Amazonas. Na Avenida do Parque Municipal, as pessoas ficavam espalhadas devido à amplitude da via. Isso dava a sensação de que o movimento se dispersava antes mesmo de chegar ao seu ponto final. Hoje, a Amazonas fica lotada da Praça da Estação a Raul Soares, passando pelas grandes calçadas da Praça Sete. Ao final do dia, depois que movimento para de caminhar, o lugar onde centenas de pessoas passam todos os dias se tornou quase uma balada ao ar livre.


Neste ano, ele chegou ao início da tarde, com o sol a pino. Junto a um grupo de amigos, alguns deles que já o acompanham de várias Paradas, ele assistiu às falas do palco até o início do trajeto no final da tarde. Em meio àquelas 150 mil pessoas, admirou-se não só pelo número de manifestantes, como também pelas falas e performances (“diversão, fechação, lacração”, em suas próprias palavras) politizadas. A infraestrutura é outra em relação às de 10, 20 anos atrás: com a presença não só de ONGs, como também de órgãos governamentais e até do próprio prefeito em uma curta fala. Ao olhar a sua volta, quase não via outras pessoas na sua faixa de idade. Parecia que o seu grupo era o único com pessoas de mais de 30, 40 anos. Depois de praticamente 18 anos caminhando junto à Parada, o percurso já perdeu um pouco do encanto para Luiz, que subiu pela Bahia ao invés da Amazonas, indo em direção a sua casa.


Um gay em BH 35 anos depois: o que mudou?

Em uma noite qualquer, ao passar pela Av. Bias Fortes, mais especificamente pelo número 1146, Luiz vê diversos homens mais velhos sentados em um bar. A visão não lhe é estranha ou incomum: afinal, o Bia’s, assim como outros estabelecimentos da região da Praça Raul Soares, é conhecido por esse tipo de clientela. O que lhe provoca é a percepção de que está cada vez mais próximo de parecer com um deles.


Entre os amigos, o assunto do envelhecimento já surge com mais naturalidade. Asilo para LGBTQs? Uma moradia coletiva? Seriam essas algumas das possibilidades para uma pessoa não-hétero que entra a terceira idade? Vem à minha cabeça uma reportagem do El País na qual uma entrevistada diz “Na terceira idade, o gay volta para o armário para sobreviver”.


Ao lhe perguntar sobre o envelhecimento, pela primeira vez na entrevista, vejo na sua expressão certo acanhamento, ainda que aborde essa questão com leveza. A sua preocupação com a chegada aos 60 não é tão grande assim, assegura logo em seguida. Casa própria, boa relação com a família e emprego estável, tudo isso lhe traz certa tranquilidade.


No entanto, ressalta que esse não é o caso da maioria. A falta de uma rede de apoio e a precariedade das políticas públicas voltadas para esse segmento da população atinge, em especial, as travestis e transsexuais que conseguem ultrapassar a barreira da baixa expectativa de vida, que hoje é de apenas 35 anos, 40 a menos do que o restante da população, de acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais.

Conhecer a história de Belo Horizonte e do movimento da cidade contribuiu para a construção um afeto muito grande pela capital, que o manteve aqui por todo esse tempo. Ela pode não ser cosmopolita como São Paulo ou Rio, mas não é provinciana também. A “tradicional família mineira” não é uma instituição tão consolidada na cidade, que é muito mais jovem do que essas outras metrópoles. Muito da ideia que temos sobre essa categoria foi construído pelas reflexões do colunismo dos anos 60 sobre as mudanças trazidas pela revolução sexual.


Durante esses 35 anos, Luiz viu as áreas da cidade nas quais se pode expressar o afeto se expandirem. A Savassi, a Praça da Liberdade e a Avenida Augusto de Lima, entre a Praça Raul Soares e a Praça Afonso Arinos, são alguns desses lugares. É um movimento lento no qual as zonas de conflito vão desaparecendo na medida em que as novas gerações crescem e veem as relações LGBTQ como algo não só natural, mas também comum. Isso trouxe mais tranquilidade em ir aos lugares do circuito cultual de Belo Horizonte, como o CCBB, o Cine Belas Artes e o Palácio das Artes.


Ao longo do tempo, ele foi os poucos parando de frequentar tanto os lugares LGBTQ. Se em 87 sentar-se em mesas na rua era o que lhe atraía na Rua da Lama, hoje é o que lhe desagrada em ir ao Bombshell, bar da Rua Sergipe, 1389, que ele aponta como um dos poucos estabelecimentos nos quais ainda se tem um pouco das características dos guetos. Apesar de não ir mais à Gis Club, casa famosa pelos shows de drags que desde 2001 está no início da Av. Barbacena, próxima à Estação Carlos Prates, ela ainda lhe vem à mente quando pensa nos lugares que marcaram alguns desses anos. No entanto, fica a boa memória das décadas como resistência e militância.

 
 
 

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