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SER LGBTQ EM BH

O que é ser pansexual em BH?

Atualizado: 27 de nov. de 2018


Mulher, negra, pansexual. É assim que ela se define. Antes de ser estudante de Ciências do Estado, moradora de Belo Horizonte, escorpiana, espírito livre, jovem, ateia e até mesmo do seu nome, Ísis. Por coincidência, escolhemos para nos encontrar no Dia da Visibilidade Bissexual, 23 de setembro. Por alguns anos ela se definiu assim, até conhecer outras formas de expressão de gênero além do binário de homem e mulher. Com o sol a pino, às 13h, chego ao seu apartamento no Centro, uma república onde mora com outras duas meninas.


Sento-me em uma cadeira na sua cozinha enquanto ela termina de se aprontar. Ísis é alta, tem porte largo e um black power que naquele dia estava adornado com um laço rosa claro. Sua escolha de vestimenta para este dia quente é um longo vestido branco com detalhes pretos parecidos com respingos de tinta, chinelos, grandes brincos em formato de folha e uma pulseira prateada. No seu braço, está tatuado “Lumos”, uma referência ao feitiço usado para acender uma luz com a varinha na saga Harry Potter.


Eu a encontrei pela primeira vez há alguns anos, quando nós cursávamos o ensino médio no CEFET-MG. Ísis era bastante conhecida, não só pela sua natureza amigável, como também pela sua militância feminista, pró-LGBTQ e pelo movimento negro. Nós dois participávamos de comitês simulados da ONU, período durante o qual pude conhecê-la um pouco melhor. No entanto, como já não éramos muito próximos, nos afastamos logo quando me formei. Só nós víamos ocasionalmente na noite da cidade, especialmente nos shows de drag que ocorrem em festas e boates.


Descemos para uma área aberta do seu prédio para realizar a entrevista. Próximo ao estacionamento e à rua, o barulho dos carros é constante, com um ocasional canto de pássaros que não estão à vista. Antes de começarmos, ela passa um batom vermelho e bebe um gole d’água de seu copo, que tem um desenho de seu signo. No começo da entrevista, a sua voz está um pouco rouca devido a uma alergia, mas ela vai se normalizando ao longo da conversa. A forma doce como fala é colorida pelo seu jeito risonho e leve. Sentada na cadeira de balanço, a nossa conversa corre de uma forma relaxada e tranquila.


Como a pessoa LGBTQ se descobre dentro da periferia

Ísis passou boa parte da sua infância morando em um bairro de classe baixa próximo ao Centro de Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte. Filha de uma mãe baiana, ela morava em um prédio repleto de evangélicos. Esse ambiente já lhe mostrava um pouco de como o mundo era diverso, mas nem por isso deixava de ser opressor.


Se fora de casa ela encontrava um ambiente mais hostil, a realidade na família era bem mais leve. O candomblé da mãe era o que prevalecia em meio às crenças ao seu redor, como o catolicismo do pai e as religiões evangélicas da vizinhança. A religião de origem africana é baseada no culto aos orixás, divindades relacionadas a elementos da natureza que fazem a mediação ente a terra e Olorum, o ser supremo dessa e de diversas outras religiões afro. Apesar disso, ela não se identificou com nenhum desses e outros dogmas ou religiões com os quais teve contato, levando-a ao ateísmo.


Em meio a isso, um ensinamento se sobressaiu para ela: a liberdade para ser. Algo que foi passado da sua mãe para a família de forma quase tácita, nem sempre verbal. Um irmão músico, uma irmã biomédica, ela, cientista do estado, e o irmão mais novo de exatas.

A região onde Ísis cresceu não favorecia que as pessoas LGBTQ tivessem liberdade de expressar afeto livremente. Apesar de sua infância ter sido há pouco mais de 10 anos, já há alguma mudança na vizinhança: talvez menos olhares tortos ou menos fofoca sobre quem não é hétero ou cisgênero. A sua primeira experiência afetivo-amorosa foi com uma menina ainda no início da adolescência, mas a memória pareceu ter sumido totalmente da sua mente por vários anos, recalcada no sentido freudiano, até lembrar-se disso no ensino médio, quando já compreendia melhor a sua sexualidade. Tudo isso pela maneira como aquele ambiente rechaçava as sexualidades que fugiam ao padrão heternormativo.


Esse processo de descoberta não foi fácil, ou linear. Em seus anos como bolsista em uma escola particular, a mesma onde os irmãos estudavam, tinha poucas referências tanto de pessoas negras quanto de LGBTQs. Durante a sua infância, se considerou hétero. Só pouco antes de ingressar no ensino médio reconheceu que também sentia atração a mulheres, momento no qual se assumiu como bissexual.


A adolescência assumida

A grande virada foi a entrada no CEFET-MG, o Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Com essa alcunha desde 78, a instituição surgiu há 109 anos como a Escola de Aprendizes Artífices de Minas Gerais. Hoje com 11 campi, três deles em BH, e 17.667 matrículas (segundo dados de 2017), é definitivamente uma instituição de referência para os mineiros.


Para quem cresceu em BH, como eu, ingressar no CEFET no ensino médio tem um peso similar a ingressar em uma faculdade federal para o restante do país. Há uma grande autonomia dos alunos, que não são vigiados por porteiros ou disciplinários, apesar de terem grades de horários fixas como em outras escolas. As aulas, que às vezes vão de 7h às 18h, com intervalo de almoço, eram divididas entre disciplinas regulares do ensino médio e as do curso escolhido pelo aluno.


O Campus I, localizado no nº 5253 da Avenida Amazonas, ocupa um quarteirão de 29.990 m² e quem passa da rua vê de longe a quadra e o prédio onde ocorrem as aulas. Aquele grande paralelepípedo possui corredores quase infindáveis, com amplas janelas por onde o sol entra ao final da tarde. As numerosas salas de aula recebem centenas de alunos todos os dias, assim como o bosquinho e o Caxeódromo, dois dos espaços de convivência da instituição.


Uma das marcas do CEFET-MG é a diversidade dos seus alunos, mesmo antes da implementação da política de cotas em 2013. Quando ingressei em 2012, lembro-me de na aula de abertura escutar falar sobre como, nos três anos seguintes, iríamos conviver com pessoas das mais diversas personalidades, jeitos e origens. De fato foi o que aconteceu: na minha sala tinha gente de quase todas as regiões da cidade, além de alguns alunos da Região Metropolitana que passavam horas por dia na viagem entre a sua casa e a escola. Ísis, apesar de ser de outro curso, era um desses casos: o trajeto de ida e volta até Contagem ocupava cerca de 4 horas do seu dia, já que ela tinha que pegar mais de um ônibus. Esse trajeto foi um dos primeiros que conheceu dentro de BH.


Foi nessas idas e vindas que Ísis começou a ter contato com os movimentos identitários. Sentada em rodas de conversa sobre gênero, debatendo acerca das diferentes formas de sexualidade e tomando consciência de como isso tudo a posicionava no mundo.



Os seus círculos sociais mudaram drasticamente: o seu curso, Hospedagem, tinha uma fama de ser o mais atrativo tanto para mulheres quanto pessoas gays, lésbicas e bissexuais (marcadamente ainda havia e há poucas pessoas trans dentro desses espaços). Se por um lado isso gerava um estigma por parte dos outros alunos com relação a quem ingressava e a forma como essa área era vinculada a atividades domésticas (consideradas estereotipadamente femininas), por outro isso refletia em mais aceitação entre os seus colegas. Ainda em 2012, era raro que, ao chegar a uma sala de ensino médio, se encontrasse muitos alunos assumidamente gays, lésbicas ou bissexuais. Por muito tempo, fui a primeira pessoa declaradamente gay em minha sala, por exemplo.


Foi muito marcante poder observar a violência a sua volta: era muito mais fácil perceber o machismo em um comentário dirigido a uma amiga do que aqueles sobre ela mesma. Na sala ao lado havia um dos cursos mais masculinos e machistas, Mecânica, no qual havia duas meninas em uma sala de 40. Ao ver o preconceito sofrido por essas colegas, a turma de Hospedagem começou a acolhê-las e até mesmo tentar sensibilizar os homens sobre comportamentos opressores, que nem sempre eram conscientes.


A partir dessas discussões sobre gênero e sexualidade, Ísis confirmou a sua identidade de gênero como mulher e percebeu que pansexual refletia melhor a sua orientação. A diferença é que, enquanto a pessoa bissexual não necessariamente se sente atraída por todas as formas de expressão de gênero, quem é pansexual sim.


Como diversas pessoas da nossa geração e das anteriores, esse primeiro contato com discussões de gênero e sexualidade ocorreu após a entrada em instituições federais, especialmente as universidades. Também foi o primeiro lugar onde ela se sentiu a vontade para expressar afeto: abraçar, andar de mãos dadas, beijar. Isso gera uma fama de que “as federais tornam as pessoas LGBTQ”, quando na verdade essas pessoas só estão dando vazão a inquietações internas que já estavam lá, mas ainda eram incompreendidas. Já quando ingressou na UFMG em 2016, conseguia identificar colegas que também começaram o ensino superior já com uma visão mais ampla de gênero e sexualidade.


Diferente de muitas pessoas, ela não sentiu necessidade de se assumir para a família. Ela preferiu ter outra abordagem. Um dia chegou para a sua mãe e falou: “Mãe, fiquei com essa menina”. A reação foi de certa surpresa, mas nada negativo. No outro, contou que ficou com um menino, e assim foi com os seus irmãos também. Aos poucos, foi naturalizando a ideia de que ela não era nem hétero, nem homo. Quando lhe questionavam, ela dizia, categoricamente: “Pesquisa!”.


Com a implementação da política de cotas, o número de pessoas negras no CEFET começou a aumentar. Com essa mudança, ficou muito mais fácil de refletir sobre a ausência de outros negros ao seu redor não só no passado, como também em espaços como shoppings, bares, boates e até mesmo entre o corpo docente. No caso da orientação sexual, ela afirma que em toda a sua trajetória não teve um professor que não fosse hétero, ao menos assumidamente.


Interseccionalidade: além do gênero e da sexualidade, o racismo

Para além das discussões de gênero e sexualidade, uma cena que ocorreu no CEFET a marcou muito. Era o seu primeiro ano do ensino médio. Ao olhar a sua volta logo nos primeiros dias de aula, Ísis já havia percebido que além de ser uma das poucas negras na sala, era uma das únicas que não tinha um iPhone como celular. Em uma aula, a professora pergunta: “quem já viajou para o exterior?” e mais da metade dos alunos levanta a mão. Naquele ambiente, ela não era só parte de uma minoria racial, mas também econômica.


Desde cedo, Ísis foi submetida a sucessivos processos de alisamento capilar. A química dos produtos usados no “relaxamento”, que conferiam ao cabelo uma textura borrachuda, causava reações alérgicas tão fortes que já levaram Ísis ao pronto socorro, com sequelas até hoje. No entanto, o motivo não era simplesmente uma preferência estética de sua mãe, mas também um receio de como as outras pessoas a tratariam ao ver o seu cabelo crespo. Já adulta e depois de anos de transição capilar, ela ainda teve que passar por essas experiências. Andando pelo Mercado Central, a algumas ruas da sua casa, escuta sussurros como “olha o cabelo sujo dessa menina!”.


A política de cotas de fato melhorou a capacidade de ingresso das pessoas negras e de baixa renda no ensino superior, mas as barreiras do preconceito ainda não foram vencidas. O discurso de que estudantes cotistas “roubam” ou “não merecem” as suas vagas ainda circula, especialmente em meio à classe média. Não obstante, o sistema de cotas sofre com diversos problemas de fraude, que inclusive suscitam o debate de até onde a autodeclaração é um meio efetivo e de quais outros critérios poderiam ser usados.


Os estudantes negros que de fato ingressam na universidade pública mantêm um desempenho bastante similar aos de seus colegas, por vezes até superior (conforme estudos realizados na UnB, UFMG, UFJF, Folha de São Paulo e o ENADE). As dificuldades são maiores para aqueles de baixa renda, que enfrentam problemas para se manter nas faculdades.


A grande questão do racismo é que muitas vezes ele não bate de frente, mas sim que ele está tão enraizado, presente em lugares difíceis de eliminar. Um exemplo disso é o levantamento feito pela UFJF segundo o qual apenas 20 dos mil professores da Universidade são negros e que apenas 34% dos estudantes do ensino superior são negros ou pardos. Já na USP, 94,6% dos docentes ativos se declaram brancos e apenas 1,83% são negros. Para Ísis, esse é um insulto institucional ao qual, diferente dos sussurros no Mercado Central ou da pessoa que te chama “macaco”, não temos como responder de imediato. Isso também se repete com mulheres, outras identidades de gênero e orientações sexuais fora do padrão heteronormativo.


A partir disso, é possível perceber o quanto as pessoas negras ainda estão às margens da sociedade. Ou seja, são milhares que, diferente de mim e de Ísis, não tem a oportunidade de ter o contato com, por exemplo, os movimentos identitários. Por isso, é muito mais difícil alcançar essas pessoas com discursos sobre inclusão e diversidade. É necessário pensar em outras formas de fazer com que esses debates cheguem às periferias.


Tão perto, mas ainda tão distante: de Contagem para BH

Quando passou em Ciências do Estado, em 2016, Ísis colocou na ponta do lápis o custo das passagens do coletivo metropolitano todos os dias. Na época, a maioria das linhas cobrava R$ 4,45 a cada rodada de catraca. Isso tudo no final do mês já dava pra praticamente pagar o aluguel de um quarto no Centro. Estava tomada a decisão: ela se mudaria para perto do Campus de Direito da UFMG.


Nesses dois anos, a sua visão de Belo Horizonte mudou completamente. A de Contagem também. Era muito diferente para ela poder ir e voltar a pé do seu bar favorito a hora que fosse sem se preocupar, afinal, eram só dois quarteirões. Em Contagem, pelo contrário, tudo parecia tão distante, ainda mais para ela que morava longe do bairro Eldorado, cujo maior tesouro é a estação de metrô e alguns shoppings. Se fosse voltar para a sua casa de alguma balada antes da mudança, as alternativas eram pagar um valor alarmante no táxi ou o medo: do ônibus não passar, atrasar, de ficar no meio de uma rua escura sozinha esperando.


As primeiras incursões de Ísis por BH foram nas redondezas do CEFET e o trajeto até a sua casa. Depois veio o percurso da Parada LGBT: sabia chegar até a Praça da Estação, que se seguisse a Amazonas caía na Raul Soares e por assim vai. Mas foi só depois da mudança que veio a conhecer Timbiras, Guajajaras, Goitacazes, Bias Fortes e Augusto de Lima. Com tantas descobertas em apenas alguns poucos meses foi que percebeu o quão pouco ela conheceu Contagem nas quase duas décadas em que morou lá. Tudo isso por um privilégio que, muitas vezes, nos passa batido: a possibilidade de fácil acesso à cidade.


Ísis é uma pessoa da vida noturna e isso é algo muito fácil de ver pelos seus Stories do Instagram. Lá ela registra rolês na casa de amigos, shows, cantorias de karaokê. O que gosta mesmo é de uma balada, mas não recusa convites para ir a restaurantes e bares com música. Lembro-me de uma vez, em maio deste ano, quando a encontrei em uma edição da Eleganza na Gis Club.


A casa, aberta há quase 20 anos ao lado da Estação de Metrô Carlos Prates, já se tornou uma das mais tradicionais de BH. Conhecida por ter drags entre as suas atrações, a Gis tem um público bastante variável a depender da festa da noite. Já a Eleganza voltou a acontecer esse ano, após meses em inatividade. Eles já trouxeram diversas estrelas de RuPaul’s Drag Race à capital mineira, além de dar destaque a novas drag queens da cena belorizontina.


Na ocasião em que nos encontramos, a pista estava lotada. Anunciaram um concurso de Voguing, um estilo de dança criado pelos LGBTQs negros e latinos nos anos 80 que mistura poses (em imitação às das revistas de moda), passos de outras danças e até mesmo artes marciais. No palco, a hostess chama por voluntários. Após alguns minutos de silêncio, surgem alguns candidatos e Ísis é uma delas.


Nessa pequena amostra, primeiro cada um dos concorrentes desfila por uma estreita passarela que abrem na pista. Depois, começa a dança. Como amadores, eles ainda fazem os movimentos de forma desajeitada. Hoje o Voguing já possui diversos estilos diferentes, cada um com um foco. O Femme, por exemplo, tem como base gestos delicados, que remetam à feminilidade. Naquela apresentação, até mesmo o campeão fez uma performance sem um estilo muito marcado. De qualquer forma, todos foram recebidos com aplausos.


Mesmo frequentando os lugares LGBTQ da cidade há poucos anos, ela já percebeu mudanças. O Bar da Cleidir, que entre 2015 e 2016 era um dos karaokês mais frequentados por LGBTQs do Centro, começou a ter um público muito mais misto desde o final de 2017. Até retiraram o palco, onde, não raro, o que era pra ser só mais uma música se transformava quase em uma performance teatral. A boate DDuck, da Praça da Savassi, passou por uma mudança similar durante o mesmo período.


Ísis, a borboleta social

O acompanhamento de Ísis foi repleto de imprevistos e mudanças de plano desde o início. A princípio, eu iria à edição de Halloween da festa @bsurda junto a ela. No entanto, os ingressos se esgotaram antes que eu pudesse comprá-los. Passado o seu aniversário, comemorado na casa de amigos, e o segundo turno das eleições, marcamos de ir ao restaurante/bar Suricato no dia 3 de novembro. A sua mãe havia reservado uma mesa no estabelecimento para a filha e alguns de seus amigos.


Localizado no Floresta, Suricato é um “apelido” para Associação de Trabalho e Produção Solidária, que acolhe pessoas em sofrimento mental dentro do seu quadro de empregados, em parceria com os serviços de atendimento de saúde mental da cidade. Além da culinária, há artesanato, móveis e mosaicos feitos manualmente, alguns deles à venda para quem passa por lá. O local recebe eventos como apresentações de diversos tipos, oficinas de arte, rodas de conversa e lançamentos de livros.


Desço do ônibus próximo à Avenida Silviano Brandão, uma das principais da regional Leste. Os carros não param de passar, apesar de as calçadas estarem vazias. Entre os poucos pedestres, a maioria traja a camisa do Atlético Mineiro. Enquanto ando pelo passeio, já sinto o meu tênis novo machucar o meu pé por não ter laceado ainda. 18h48 eu sinto o meu celular vibrar e é uma mensagem da Ísis perguntando se eu poderia chegar uma hora mais tarde, já que sua mãe havia pedido para encontrá-la lá só às 20h. Quando digo que já estou na porta, me responde que tentará chegar às 19h30.


Tenho um pouco de dificuldade de encontrar o Suricato devido à sua fachada que se assemelha a de uma casa e às luzes apagadas. Suspeito de que o estabelecimento não abriria naquele dia, mas não há nenhum aviso no Facebook sobre isso. Depois de alguns minutos, desce um homem pela rua deserta e entra pelo portão. Do outro lado da rua, o observo falar algumas coisas próximo a uma das portas da fachada, e só consigo discernir algo sobre o fato de o restaurante estar fechado. De lá de dentro, ele grita algo como “Você viu algo sobre o restaurante não abrir hoje?” e eu digo que não. Em seguida, ele acende uma das luzes da recepção, eu o interpelo e ele confirma as minhas suspeitas.


Enquanto troco mensagens com Ísis, faço o caminho de volta para o ponto de ônibus. Próximo destino: a casa dela. Entro em um táxi, que me pergunta se o jogo no Horto, o estádio do Atlético que fica a alguns quarteirões dali, não “embolou o meu meio de campo”. “Isso explica as camisetas dos pedestres”, penso, e lhe respondo que nem sabia do jogo para começo de conversa. No rádio, um estranho remix de Dreams do Fleetwood Mac, que só reconheço pelo verso “players only love you when they’re playing”.


Na sua casa, encontro-a ainda terminando de se arrumar. Seu cabelo está em longas tranças com as pontas rosas. Já usando uma camiseta branca com uma estampa de palmeira e uma calça preta com algumas pedrarias nas laterais, ela calça um par de Nike brancos e vai ao banheiro escovar os dentes. Ainda não sabíamos o motivo do imprevisto no Suricato, mas a frustração está clara. Enquanto aguardamos o aviso de sua mãe, Maria José, de que estava chegando ao nosso novo ponto de encontro, Ísis manda mensagens para os seus amigos e conversamos sobre as Kardashians, um dos muitos assuntos de cultura pop sobre os quais ela gosta de discorrer.


Subimos em direção ao bar Redentor, na Savassi. Chegando à porta, depois de 5 min a mãe de Ísis e um casal de amigos dela, Daniel e Isabella, nos encontram. Devido à lotação do local, decidimos andar pela Sergipe até um estabelecimento mais vazio. O primeiro assunto foi o Suricato: a mãe da Ísis ligou para uma das secretárias do restaurante, que lhe contou que uma parte da equipe estava em viagem no feriado e por isso o restaurante estava fechado.


Enquanto Ísis vai na frente com os dois, caminho junto a sua mãe respondendo a algumas perguntas que ela fez sobre o Ser LGBTQ em BH. Ao longo da noite, percebo o quanto Maria José e nossa entrevistada são parecidas, não só no rosto arredondado, cabelos crespos e olhos pequenos. O jeito calmo e doce de falar é complementado por personalidades fortes, o que cria uma dinâmica peculiar na forma como elas interagem entre si. Como ela havia dito na entrevista, “a liberdade para ser” está ali e ela não muda o seu jeito devido à presença da matriarca.


A rodada dupla de drinks e Chopp a R$2,99 do On Pop Bar nos salta os olhos, quarteirões antes de chegarmos à Av. Cristóvão Colombo. Já havia passado por essa região diversas vezes, mas nunca havia prestado atenção naquela placa. Sentamos na mesa de frente para uma TV na qual as reportagens do Jornal Nacional corriam sem áudio, enquanto um cantor tocava MPB e sertanejo a alguns metros de nós.


Como é comum às conversas de bar, os assuntos variam muito: das referências ao satanismo em O Mundo Sombrio de Sabrina para o posicionamento de Ciro Gomes no segundo turno, passando por histórias de infância, como uma vez em que a mãe de Ísis comprou doces para usar de oferenda no dia de São Cosme e Damião. Durante o papo, passam pela nossa mesa caipirinhas, chopps, cuba libres, carnes, batatas e mandiocas.


Enquanto o cantor começa a sua segunda ou terceira saideira, “Vai no cabeleireiro, no esteticista. Malha o dia inteiro, vida de artista”, na TV em minha frente, um dos últimos episódios da novela Segundo Sol havia acabado e começa o Zorra Total. Nós nos despedimos de Maria José, que já estava terminando a noite em um Uber para sua casa. Já para Ísis, era só o começo de algo que iria até o sol raiar.


Primeira parada: o bar Gujoreba. Subimos a Antônio de Albuquerque até a Praça da Savassi, passando pelo restaurante/bar Café com Letras. Ela já havia mencionado o estabelecimento na nossa conversa no On Pop, frustrada pela mudança na cozinha ter afetado um dos seus pratos prediletos do seu restaurante favorito: o Aligot, um purê de batatas misturado com queijo.


A parada no Gujoreba é apenas um instante. Em meio àquele mar de mesas lotadas, Ísis cumprimenta um de seus amigos e seguimos para o bar Esquenta, na esquina da Sergipe com a Getúlio Vargas. Novamente, damos de cara com a falta de cadeiras vazias.


Conheci o Esquenta há cerca de um ano por causa de um amigo e foi um ponto de encontro ocasional para meus amigos durante 2017. Além da boa localização, o fato de tocar música pop durante a noite toda foi um dos principais atrativos para passar algumas horas ali bebendo uma cerveja, tomando shots ou comendo um espetinho. No entanto, desde que abriu o bar ao lado, John John, essa preferência se esvaiu. Chega um momento da noite em que desligam o som para que o vizinho toque sertanejo ao vivo. Em um dos dias que estava lá, vimos um cantor que sequer sabia a letra das composições que tocava.


Neste momento, comprovo algo que a mãe da Ísis havia dito algumas horas atrás sobre a filha: ela conhece todo mundo. Mesmo com quem não conhece, facilmente faz amizade. Enquanto eu converso com uma antiga colega de trabalho que encontrei ao acaso, ela papeia com dois paulistas que estavam procurando um lugar para virar a noite antes de pegar um voo de volta para a sua cidade de manhã. A expressão em inglês para isso é social butterfly. Uma pessoa capaz de circular entre diferentes círculos sociais, como uma borboleta para de flor em flor. Não ficamos lá por muito tempo: chegam mais dois amigos da Ísis e começa o sertanejo.


Voltamos à Praça da Savassi pela Avenida Getúlio Vargas e passamos direto pelas filas de balada que viram o quarteirão na Rua Pernambuco. Subindo uma escada em uma abertura estreita, está um dos lugares favoritos de Ísis em BH: a Oficina de Sabor. De dia restaurante e à noite bar-karaokê, o local tem diversas opções de acomodação: mesas no quarteirão fechado na praça, o palco dos cantores amadores no segundo andar e a sinuca no terceiro.


Nós nos acomodamos próximos às janelas do segundo andar, que estão cobertas por algumas espumas em uma espécie de isolamento acústico improvisado. Os amigos de Ísis pedem algumas cervejas, enquanto olham as músicas disponíveis e toca o clássico das nossas infâncias, “Se a lenda dessa paixão faz sorrir ou faz chorar, o coração é quem sabe”. Vozes desafinadas cantam algumas músicas brasileiras, seguido pelo coro de jovens nostálgicos com “I came in like a wrecking ball, I never hit so hard in love” e “I never wanna hear you say I want it that way”.



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